A perda de um ente querido já é um momento de profunda dor e desorientação. Em meio ao luto, surgem responsabilidades práticas e urgentes que podem parecer um labirinto, especialmente hoje, quando a vida também acontece no ambiente digital.
Os conflitos mais intensos em inventários modernos nascem de dúvidas como: "O que acontece com as redes sociais, milhas, criptomoedas, fotos na nuvem e e-mails do falecido?", "Tenho direito a esses bens?", "Como descubro o que existe?", "Existem prazos?".
Este guia foi criado para ser o seu mapa resumido e inicial. O objetivo é te ajudar a entender o cenário, organizar as informações e se preparar para a conversa com um advogado, tornando o processo de inventário mais rápido, seguro e menos custoso.
O Ponto de Partida: Com a Morte, a Herança se Transmite Imediatamente
No exato momento do falecimento, a lei determina que toda a herança — um conjunto de bens, direitos e obrigações — é transmitida imediatamente aos herdeiros. É o que o Direito chama de Princípio da Saisine (Art. 1.784 do Código Civil).
Pense nisso de duas formas:
- Como uma chave simbólica: No instante da morte, a lei entrega aos herdeiros a "chave" abstrata de todo o patrimônio. No entanto, para que essa chave realmente abra as portas (transferir a propriedade de um carro ou sacar dinheiro de uma conta), é preciso um ato formal: o inventário.
- Como a posse de um imóvel: Você pode ter o direito de usar o imóvel, mas só se torna o dono oficial após o registro no cartório. Com a herança é similar: os herdeiros recebem o direito imediato, mas a formalização é indispensável.
Isso inclui os bens digitais com valor econômico, que precisam ser regularizados com urgência.
O Conceito-Chave: Nem Tudo que é Digital é Tratado da Mesma Forma
A primeira grande lição sobre herança digital é entender que a lei faz uma divisão crucial, confirmada por decisões judiciais recentes:
- Bens Digitais Patrimoniais: São aqueles que possuem valor econômico claro. Pense neles como joias ou ações da bolsa. Exemplos: criptomoedas (Bitcoin, Ethereum), NFTs, milhas aéreas, saldos em contas de pagamento (fintechs), canais monetizados no YouTube, domínios de sites valiosos e marcas registradas online. Estes bens entram no inventário e devem ser partilhados entre os herdeiros, com o devido pagamento do imposto de transmissão (ITCMD).
- Bens Digitais Existenciais (de valor sentimental): São registros da vida, da personalidade e da intimidade do falecido. Não têm um valor financeiro direto. Exemplos: fotos e arquivos na nuvem (iCloud, Google Drive), perfis em redes sociais (Facebook, Instagram), conversas em aplicativos de mensagens e e-mails pessoais. O tratamento aqui é focado na privacidade e na memória, não na partilha.
Seção 1: Quando o Acesso se Torna Legal? (E o que NÃO fazer com a senha)
Se você tem a senha do celular ou do computador do falecido, a tentação de acessar tudo pode ser grande. Cuidado: ter a chave não significa ter o direito de abrir todas as portas.
A lei protege o sigilo das comunicações e a privacidade (Marco Civil da Internet e Constituição Federal). Acessar e-mails e mensagens privadas sem autorização pode ser considerado um ato ilegal. O entendimento dos tribunais, como o TJ-MG — Agravo de Instrumento 17438143020248130000, é que o acesso a dados pessoais e íntimos não é um direito automático dos herdeiros.
O acesso legal aos ativos digitais só é "destravado" com a nomeação do inventariante (seja no inventário judicial ou extrajudicial). É ele quem representará o espólio (o conjunto de bens) e poderá, com autorização judicial ou por meio da escritura de inventário, solicitar legalmente o acesso às informações patrimoniais junto às plataformas (Google, Meta, corretoras de criptoativos etc.).
Seção 2: A Exceção Mais Importante – O Direito à Privacidade Pós-Morte
Este é um ponto fundamental. O direito à intimidade, à privacidade e à honra (Art. 5º, X, da CF e Arts. 12 e 21 do Código Civil) não morre com a pessoa. Ele sobrevive para proteger a memória do falecido.
Isso significa que o Princípio da Saisine (a transmissão da herança) é limitado pela privacidade. Enquanto a herança patrimonial (milhas, criptos) é transmitida, o direito de "vasculhar" e-mails, fotos íntimas e conversas privadas é barrado. Como decidiu o TJ-SP — Apelação Cível 11196886620198260100, perfis de redes sociais são direitos personalíssimos e não se transmitem por herança se não tiverem conteúdo patrimonial.
Um juiz só autorizará o acesso a conteúdo privado se for estritamente necessário para resolver uma questão do inventário (ex: provar a existência de um bem valioso oculto), e não por mera curiosidade familiar.
O Papel do Planejamento: Ferramentas como o "Legado Digital" da Apple ou o "Contato Herdeiro" do Facebook são formas de o titular da conta autorizar, em vida, o que acontece com seus dados, equilibrando o acesso à memória (fotos) e a proteção da privacidade (mensagens).
Seção 3: Nuances Práticas e Multidisciplinares
- Como o valor é calculado? (Direito Tributário): O valor de criptoativos e milhas deve ser declarado no Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Para isso, utiliza-se o valor de mercado na data do óbito. Exemplo prático: Se o falecido tinha 1 Bitcoin e na data do falecimento a cotação era de R$ 350.000, este será o valor a ser declarado. Se tinha 100.000 milhas que valiam R$ 2.000, este valor também entra no cálculo. A Receita Federal exige a declaração de criptoativos (Instrução Normativa RFB n.º 1888/2019).
- Quem paga as dívidas e custos de manutenção? (Direito das Obrigações):
- Despesas de Manutenção (Necessárias): Pagar a mensalidade do iCloud para não perder as fotos da família ou renovar um domínio de site que gera renda são despesas do espólio. Se um herdeiro adiantou o pagamento, ele tem direito a ser reembolsado pelo conjunto da herança.
- Dívidas de Consumo: Assinaturas de Netflix, Spotify ou jogos são dívidas do espólio, mas devem ser canceladas imediatamente pelo inventariante, pois não servem para conservar o patrimônio.
Seção 4: Mãos à Obra – Como Fazer o “Mapa do Tesouro Digital” Para o seu Advogado
O seu papel como herdeiro é o de um detetive que organiza as pistas para que o advogado possa agir.
4.1. Checklist de Investigação (Onde Procurar):
- Dispositivos Físicos: Reúna celulares, computadores, HDs externos e pen drives. Aviso importante: Não tente adivinhar senhas repetidamente. Isso pode bloquear o aparelho para sempre.
- Documentos em Papel: Procure em agendas, cadernos e blocos de notas. Muitas pessoas anotam senhas, frases de recuperação de carteiras de criptoativos ou nomes de serviços.
- E-mails (se houver acesso legal): Se o inventariante já tem acesso ao e-mail principal, busque por mensagens de "confirmação de cadastro", "bem-vindo(a) a..." de corretoras, redes sociais e outros serviços. Faturas de cartão de crédito também revelam assinaturas ativas.
4.2. Para os herdeiros que NÃO têm acesso:
- Passo 1 (Mapeamento): Liste todos os dispositivos conhecidos, e-mails, redes sociais e possíveis bancos ou corretoras que o falecido usava.
- Passo 2 (Nomeação do Inventariante): Contrate um advogado para iniciar o inventário (judicial ou extrajudicial, conforme o caso) e nomear o inventariante. A Resolução n.º 452/2022 do CNJ facilitou essa nomeação em cartório.
- Passo 3 (Ação Legal): O advogado, representando o inventariante, notificará as empresas de tecnologia (Google, Meta, Binance etc.) ou entrará com um pedido judicial para que informem sobre a existência de ativos e liberem o acesso legal.
4.3. Para o herdeiro que TEM o acesso (sabe a senha):
- Passo 1 (Cautela e Organização): Seja proativo, mas com responsabilidade. Não apague nada, não transfira valores (Pix) ou criptoativos para sua conta pessoal. Isso pode configurar crime e gerar enormes problemas no inventário. Comunique imediatamente o advogado.
- Passo 2 (Prestação de Contas): Organize e faça um backup dos arquivos de valor sentimental (fotos, vídeos) para compartilhar com os outros herdeiros, desde que não haja conteúdo íntimo. Liste todos os ativos financeiros que encontrar (saldos, milhas, criptos) e entregue ao advogado para que sejam corretamente declarados e partilhados.
E para quem mora no exterior?
A situação exige mais etapas, mas é perfeitamente resolúvel. Será preciso emitir uma procuração em um consulado brasileiro ou, se o país for signatário da Convenção de Haia, fazer o documento e o Apostilamento de Haia para que tenha validade no Brasil. Hoje, muitos atos do inventário podem ser feitos online, facilitando a participação.
Conclusão: Preparação é a Chave
A lei busca equilibrar a proteção do patrimônio e o respeito à memória e privacidade do falecido. Negligenciar a herança digital pode levar à perda definitiva de ativos, multas por atraso no imposto e disputas familiares.
A melhor solução é se preparar. Mapear o universo digital do ente querido e levar as informações organizadas ao advogado acelera o inventário, protege o legado da família e garante que a partilha seja feita de forma justa e segura.
O que as Grandes Empresas Exigem?
A seguir, detalhamos os procedimentos e requisitos de três grandes plataformas digitais após a morte de um usuário, cobrindo o planejamento em vida e o procedimento sem planejamento:
Apple (iCloud)
Para a plataforma Apple (iCloud), a ferramenta de planejamento em vida disponível é o Legado Digital. No caso de um procedimento pós-morte sem planejamento prévio, a empresa requer uma ordem judicial rigorosa. Em termos do que os herdeiros podem obter, é o acesso a dados (fotos, notas), se autorizado pelo juiz. O link útil direto fornecido para mais informações é: support.apple.com/pt-br/HT212360
Google (Gmail, Drive)
No que tange ao Google (Gmail, Drive), a ferramenta de planejamento em vida é o Gerenciador de Contas Inativas. Se não houver planejamento, o procedimento pós-morte envolve um processo formal de solicitação (que pode exigir ordem judicial). O resultado para os herdeiros pode ser o encerramento da conta ou, em raras circunstâncias, o acesso a alguns conteúdos. O link direto para o suporte é: support.google.com/accounts/answer/3036546
Meta (Facebook/Instagram)
Por fim, a Meta (Facebook/Instagram) oferece o Contato Herdeiro como ferramenta de planejamento em vida. Sem esse planejamento, o procedimento pós-morte envolve uma solicitação de "Memorialização" (homenagem) ou exclusão da conta. É importante notar que, neste caso, os herdeiros não obtêm nenhum acesso ao conteúdo (mensagens, fotos privadas). O link útil para mais detalhes é: www.facebook.com/help/103897939701143.
Este artigo tem finalidade exclusivamente informativa e educativa, nos termos do Provimento n.º 205/2021 do CFOAB. A análise de um caso concreto e a prestação de serviços jurídicos dependem da consulta com um advogado.
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